terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Revolução silenciosa

Bolívia enriquece, distribui renda, cuida da saúde do seu povo, acaba com o analfabetismo. E irrita a elite branca

“A Bolívia não é um país, é um acampamento”, disse certa vez, durante a ditadura brasileira, o general Golbery do Couto e Silva. E teria dito também que seria bom dividir esse “acampamento” entre os países vizinhos, de maneira que o país sumisse do mapa. Não haveria muito de novidade nisso.

Na época de sua independência, há 201 anos, a Bolívia tinha 2,3 milhões de quilômetros quadrados – hoje tem menos de 1,1 milhão. O Brasil foi o que mais garfou. O Chile tomou a fatia de litoral e deixou o país sem acesso ao mar. E são terras ricas em minérios. Peru, Argentina e até o Paraguai têm territórios conquistados da Bolívia.

Essa perda sucessiva de território sempre teve a ver com maus governantes e com militares corruptos. Todos eles descendentes de europeus. Os índios, de diversas etnias, entre elas a aymara e a quechua, nunca tiveram vez. Eram considerados não cidadãos. Até que um índio, vencendo todos os preconceitos, chegou ao governo.
Era nisso que eu pensava enquanto traduzia, admirado, parte do livro A Potência Plebeia – Ação Coletiva e Identidades Indígenas, Operárias e Populares na Bolívia (Boitempo Editorial), de Álvaro García Linera, que além de sociólogo e matemático é vice-presidente do país.

Linera é um grande intelectual, nascido em família mestiça de classe média. E teve papel importante na eleição de Evo Morales, pois foi um fator de atração da classe média urbana, que torcia o nariz para a possibilidade de um presidente índio.

Se no Brasil, como vemos quase cotidianamente lembranças na imprensa, havia o “complexo de vira-latas”, no dizer de Nelson Rodrigues, imagine a autoestima dos índios bolivianos! Não eram levados em consideração nem mesmo pela esquerda tradicional, que tinha o operariado como protagonista das transformações, e pronto! Índio não fazia parte das expectativas revolucionárias dessa esquerda.

E o que vemos agora? A Bolívia se enriquecendo, distribuindo renda, cuidando da saúde do seu povo, acabando com o analfabetismo (e, nisso, é preciso lembrar que a maior parte da população fala aymara ou quechua, mas há vários outros idiomas indígenas). A autoestima indígena está mais alta que os Andes. O operariado, representado pelos mineiros, agora é configurante no processo de transformação.

Falando em mineiros, algo acontecido em quase toda a América Latina: um líder com um passado respeitável se convertendo em capacho internacional. Na Bolívia foi Victor Paz Estenssoro, que liderou uma revolução popular em 1952, nacionalizou as minas (principal fonte de renda do país), foi eleito novamente em 1985 e fez um governo neoliberal criminoso: entregou o patrimônio do país aos estrangeiros e jogou seus operários no desemprego e no desespero.

Linera pode ser considerado um ideólogo do governo Morales. No livro, uma coletânea de ensaios (o primeiro deles sobre a atualidade do Manifesto Comunista, que pode ser pulado por quem quiser entrar diretamente no assunto Bolívia), conta todo esse processo, desde sua gestação até o esperneio da elite branca da atual parte rica da Bolívia, o leste, que não se conforma em perder o poder, mas não tem projetos consistentes nem líderes capazes de retomar o poder.

Os índios experimentaram o sabor de estar no comando. E gostaram. E inovam: em vez de um país com uma única etnia com direitos, como havia antes, propõem um país multiétnico, pluricultural. Mas não aceitam submissão, estão conscientes de seu poder e reafirmam sua identidade. Com as bênçãos de Pachamama (Mãe Terra), em suas festas tremulam as whiphalas, bandeiras multicoloridas dos povos andinos, com cada cor simbolizando algum aspecto da cultura indígena (a terra, a energia, o tempo, o espaço cósmico etc.). Uma revolução sem holofotes acontece ali.

REFERÊNCIAS

http://www.redebrasilatual.com.br/revistas/55/revolucao-silenciosa